Rafael Jardim
Saúde não é mercadoria
Apesar de parecer, para alguns, um mero capricho ideológico, a saúde
pública, universal e gratuita é realidade na grande maioria dos países
desenvolvidos. Enquanto isso, no Brasil, aplaudimos o “bilionário da
saúde”
Em sua edição do dia 1º de agosto, o CQC fez uma ótima matéria a
respeito dos planos privados de saúde no Brasil, tendo como foco
principal o descaso com os idosos, parcela da sociedade que mais demanda
serviços de saúde em geral. Os repórteres do programa mostraram, por
exemplo, a absurda diferença de mensalidade entre um jovem de 20 e
poucos anos e alguém com mais de 59. Além disso, foram mostradas as
dificuldades e obstáculos pelos quais o idoso –e apenas ele – deve
passar para conseguir o seu plano. Se não bastasse, uma funcionária de
um convênio privado confirmou que, a depender da existência de
determinadas “doenças pré-existentes”, o plano poderia até mesmo ser
negado. Ou seja, quanto mais você precisa de um plano, menores as
chances de consegui-lo.
Por experiência própria e recente, já havia percebido que a situação
dos convênios privados no país não está lá nenhuma maravilha. No
entanto, não poderia imaginar que estávamos tão próximos do modelo
desumano e falido do sistema de saúde norte-americano (relatado em
inúmeros documentários). Por mais que houvesse casos aqui e acolá de
falta de algumas especialidades em determinados locais, ou fila de
espera em outros, não imaginava que as operadoras de plano de saúde no
Brasil estão fazendo de tudo para se livrarem daqueles pacientes menos
lucrativos.
Mais uma vez, vemos o Brasil se aproximando (de forma consciente ou
não) da cultura e da realidade norte-americana, quando poderíamos nos
inspirar mais nas culturas e realidades europeias. De fato, é nesse
continente onde encontramos os países com os melhores indicadores de
saúde, com exceção ao Canadá. E não é nenhuma coincidência: o Reino
Unido, os países nórdicos, o Canadá, e outros, têm em comum modelos de
saúde pública financiados quase que exclusivamente pelo Estado, e que se
baseiam nos mesmos princípios de universalidade (acesso a todos),
equidade (atendimento igualitário), gratuidade, e abrangência (de
especialidades, serviços e procedimentos).
Todos os países citados possuem modelos diferentes e algumas
especificidades. Porém, 90 a 95% (ou mais) dos serviços são gratuitos,
com exceções em geral a tratamentos com dentistas, ou oftalmologistas.
Os remédios são subsidiados, em pelo menos 50 ou 60%. No entanto, se a
pessoa ou família não pode pagar, o Estado paga, até mesmo óculos, se
for o caso. Não à toa, todos esses países apresentam índices muito
elevados de satisfação da população com os serviços de saúde que
recebem.
Enquanto isso, o Brasil aplaude e se orgulha de Edson de Godoy Bueno, o
“bilionário da saúde”, como apelidou a Revista Exame ao colocá-lo na
capa de uma de suas edições. Na respectiva matéria, a Exame mostrou o
perfil de Bueno e os “segredos do seu sucesso”. Não vou me estender
sobre isso; destaco apenas uma de suas “corajosas” medidas para reduzir
custos, uma vez que não parecia satisfeito com os mais de R$ 6 bilhões
na sua conta (conforme estimativas conservadoras). Trata-se da, cito,
“limpeza da base de clientes não rentáveis”, quando Bueno excluiu 200
mil “clientes” da carteira de sua Amil. Mais repugnante que isso
(perdoem-me o termo), apenas a afirmação orgulhosa de Bueno de que “era
gente para encher dois Maracanãs”.
Ora, pergunto: desde quando isso é normal? Desde quando tirar das
pessoas (certamente os idosos e aqueles com doenças mais graves) os seus
planos de saúde passou a ser um exemplo de boa gestão? E mais, o que
justifica tal medida, uma vez que o simples fato de o sujeito ser
bilionário já prova que todos os seus negócios estão com ótima saúde
financeira? O que pode dizer um bilionário da saúde aos seus médicos
conveniados que fazem greve por não receberem reajustes a que têm
direito? E a principal pergunta: cadê você, Agência Nacional de Saúde?
Estamos nos aproximando perigosamente (se já não estamos lá) da triste
realidade do sistema de saúde norte-americano. Porém, lá eles andaram
aprovando uma reforma que busca humanizar o seu sistema de saúde,
garantindo acesso a uma parcela de quase 50 milhões de pessoas que não
tinham nenhum tipo de cobertura. Aqui, enquanto o jovem Sistema Único de
Saúde tenta, aos trancos e barrancos, melhorar sua qualidade e
eficiência, vemos os convênios privados gerirem seus “negócios” em uma
lógica puramente comercial e, não se pode negar, gananciosa.
Para não parecer exagerado, darei um relato pessoal. No início do ano,
cheguei a um hospital privado, junto a uma ambulância do SAMU (que me
buscou em menos de 10 minutos), precisando de atendimento emergencial.
Quando mostrei minha carteirinha, uma funcionária, que tinha à sua
frente uma pessoa em claro sofrimento, devolveu a carteira e afirmou,
sem alterar o tom de voz ou a expressão: “esse tipo aí a gente não
atende”. O “tipo” a que ela se referia, até hoje não sei qual é. O fato é
que o hospital aceitava, sim, o meu plano de saúde. Até os enfermeiros
do SAMU (que foram excepcionais no atendimento, diga-se) ficaram
escandalizados. Tive que recorrer a um hospital público. Lá, entrei, fui
submetido a um breve procedimento cirúrgico, e saí, em cerca de 25
minutos. As condições não eram as melhores, mas saí bastante satisfeito.
Nos meses que se seguiram, as dificuldades continuaram. Fui a outro
hospital particular para nada mais do que tirar os pontos que haviam
sido colocados. Não consegui. Motivo: o médico, para receber mais com a
minha consulta, disse que o procedimento precisaria de anestesia. Como
isso não era verdade, os “administradores” do meu plano, via telefone,
negaram. Uma semana depois, em um postinho de saúde, tirei os pontos,
sem cerimônia, sem anestesia, sem dor.
Como tantos milhões, fui tratado como mercadoria, por mais de uma vez.
Por outro lado, vi um sistema público que, de alguma maneira, tem se
esforçado para atender com mais qualidade, apesar de todos os percalços.
Não, não sou mercadoria. Saúde não é mercadoria. Não é nada positivo
que tenhamos um “bilionário da saúde”, muito menos em um país como o
Brasil. Tomar atitudes como excluir pessoas de planos por não serem
rentáveis, ou dificultar a vida dos idosos com burocracia e preços
escandalosos, tudo isso não pode ser apenas imoral. Existem leis que
combatem isso, e já passou da hora de serem aplicadas com rigor.
fonte: http://www.jornalopcao.com.br/colunas/contradicao/saude-nao-e-mercadoria