sexta-feira, 27 de julho de 2012

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rafael Jardim

Saúde não é mercadoria

Apesar de parecer, para alguns, um mero capricho ideológico, a saúde pública, universal e gratuita é realidade na grande maioria dos países desenvolvidos. Enquanto isso, no Brasil, aplaudimos o “bilionário da saúde”

Em sua edição do dia 1º de agosto, o CQC fez uma ótima matéria a respeito dos planos privados de saúde no Brasil, tendo como foco principal o descaso com os idosos, parcela da sociedade que mais demanda serviços de saúde em geral. Os repórteres do programa mostraram, por exemplo, a absurda diferença de mensalidade entre um jovem de 20 e poucos anos e alguém com mais de 59. Além disso, foram mostradas as dificuldades e obstáculos pelos quais o idoso –e apenas ele – deve passar para conseguir o seu plano. Se não bastasse, uma funcionária de um convênio privado confirmou que, a depender da existência de determinadas “doenças pré-existentes”, o plano poderia até mesmo ser negado. Ou seja, quanto mais você precisa de um plano, menores as chances de consegui-lo.
Por experiência própria e recente, já havia percebido que a situação dos convênios privados no país não está lá nenhuma maravilha. No entanto, não poderia imaginar que estávamos tão próximos do modelo desumano e falido do sistema de saúde norte-americano (relatado em inúmeros documentários). Por mais que houvesse casos aqui e acolá de falta de algumas especialidades em determinados locais, ou fila de espera em outros, não imaginava que as operadoras de plano de saúde no Brasil estão fazendo de tudo para se livrarem daqueles pacientes menos lucrativos.

Mais uma vez, vemos o Brasil se aproximando (de forma consciente ou não) da cultura e da realidade norte-americana, quando poderíamos nos inspirar mais nas culturas e realidades europeias. De fato, é nesse continente onde encontramos os países com os melhores indicadores de saúde, com exceção ao Canadá. E não é nenhuma coincidência: o Reino Unido, os países nórdicos, o Canadá, e outros, têm em comum modelos de saúde pública financiados quase que exclusivamente pelo Estado, e que se baseiam nos mesmos princípios de universalidade (acesso a todos), equidade (atendimento igualitário), gratuidade, e abrangência (de especialidades, serviços e procedimentos).

Todos os países citados possuem modelos diferentes e algumas especificidades. Porém, 90 a 95% (ou mais) dos serviços são gratuitos, com exceções em geral a tratamentos com dentistas, ou oftalmologistas. Os remédios são subsidiados, em pelo menos 50 ou 60%. No entanto, se a pessoa ou família não pode pagar, o Estado paga, até mesmo óculos, se for o caso. Não à toa, todos esses países apresentam índices muito elevados de satisfação da população com os serviços de saúde que recebem.

Enquanto isso, o Brasil aplaude e se orgulha de Edson de Godoy Bueno, o “bilionário da saúde”, como apelidou a Revista Exame ao colocá-lo na capa de uma de suas edições. Na respectiva matéria, a Exame mostrou o perfil de Bueno e os “segredos do seu sucesso”. Não vou me estender sobre isso; destaco apenas uma de suas “corajosas” medidas para reduzir custos, uma vez que não parecia satisfeito com os mais de R$ 6 bilhões na sua conta (conforme estimativas conservadoras). Trata-se da, cito, “limpeza da base de clientes não rentáveis”, quando Bueno excluiu 200 mil “clientes” da carteira de sua Amil. Mais repugnante que isso (perdoem-me o termo), apenas a afirmação orgulhosa de Bueno de que “era gente para encher dois Maracanãs”.

Ora, pergunto: desde quando isso é normal? Desde quando tirar  das pessoas (certamente os idosos e aqueles com doenças mais graves) os seus planos de saúde passou a ser um exemplo de boa gestão? E mais, o que justifica tal medida, uma vez que o simples fato de o sujeito ser bilionário já prova que todos os seus negócios estão com ótima saúde financeira? O que pode dizer um bilionário da saúde aos seus médicos conveniados que fazem greve por não receberem reajustes a que têm direito? E a principal pergunta: cadê você, Agência Nacional de Saúde?

Estamos nos aproximando perigosamente (se já não estamos lá) da triste realidade do sistema de saúde norte-americano. Porém, lá eles andaram aprovando uma reforma que busca humanizar o seu sistema de saúde, garantindo acesso a uma parcela de quase 50 milhões de pessoas que não tinham nenhum tipo de cobertura. Aqui, enquanto o jovem Sistema Único de Saúde tenta, aos trancos e barrancos, melhorar sua qualidade e eficiência, vemos os convênios privados gerirem seus “negócios” em uma lógica puramente comercial e, não se pode negar, gananciosa.

Para não parecer exagerado, darei um relato pessoal. No início do ano, cheguei a um hospital privado, junto a uma ambulância do SAMU (que me buscou em menos de 10 minutos), precisando de atendimento emergencial. Quando mostrei minha carteirinha, uma funcionária, que tinha à sua frente uma pessoa em claro sofrimento, devolveu a carteira e afirmou, sem alterar o tom de voz ou a expressão: “esse tipo aí a gente não atende”. O “tipo” a que ela se referia, até hoje não sei qual é. O fato é que o hospital aceitava, sim, o meu plano de saúde. Até os enfermeiros do SAMU (que foram excepcionais no atendimento, diga-se) ficaram escandalizados. Tive que recorrer a um hospital público. Lá, entrei, fui submetido a um breve procedimento cirúrgico, e saí, em cerca de 25 minutos. As condições não eram as melhores, mas saí bastante satisfeito.

Nos meses que se seguiram, as dificuldades continuaram. Fui a outro hospital particular para nada mais do que tirar os pontos que haviam sido colocados. Não consegui. Motivo: o médico, para receber mais com a minha consulta, disse que o procedimento precisaria de anestesia. Como isso não era verdade, os “administradores” do meu plano, via telefone, negaram. Uma semana depois, em um postinho de saúde, tirei os pontos, sem cerimônia, sem anestesia, sem dor.

Como tantos milhões, fui tratado como mercadoria, por mais de uma vez. Por outro lado, vi um sistema público que, de alguma maneira, tem se esforçado para atender com mais qualidade, apesar de todos os percalços. Não, não sou mercadoria. Saúde não é mercadoria. Não é nada positivo que tenhamos um “bilionário da saúde”, muito menos em um país como o Brasil. Tomar atitudes como excluir pessoas de planos por não serem rentáveis, ou dificultar a vida dos idosos com burocracia e preços escandalosos, tudo isso não pode ser apenas imoral. Existem leis que combatem isso, e já passou da hora de serem aplicadas com rigor.

fonte: http://www.jornalopcao.com.br/colunas/contradicao/saude-nao-e-mercadoria